por Bruna Giglio
“Às vezes, queremos que nos digam ‘Eu preciso de
você’ mais do que ‘Eu te amo’, porque queremos
sentir que a nossa vida tem um propósito. Então seja
corajoso e diga francamente: ‘Eu preciso de você’.”
– Amor pelas coisas imperfeitas, Haemin Sunim.
Valorizamos nossos entes queridos enquanto eles ainda estão ao nosso redor? Dedicamos uma parte do nosso precioso e escasso tempo para compartilhar lembranças e criar histórias com aqueles que dizemos que amamos? Reconhecemos nos outros suas múltiplas necessidades e sonhos enquanto seres humanos? Como tratamos aqueles, ou melhor, aquelas, que nos geraram e nos educaram? Enxergamos nossas mães para além do filtro da maternidade? A natureza de um filho é realmente a ingratidão? A natureza de uma mãe tem de ser a resignação de si mesma? Como está a nossa balança entre o amor e a realização de nossos desejos?
Todas essas, e muitas outras, são perguntas que desconfortavelmente ficam suspensas no ar durante a leitura do livro Por favor, cuide da mamãe, da escritora sul-coreana Shin Kyung-Sook. Autora bastante premiada em festivais de literatura e muito aclamada tanto no seu país de origem como na Europa e nos Estados Unidos, Shin Kyung-Sook cumpriu uma promessa ao escrever esse livro. Certa vez, quando tinha seus 16 anos e viajava de trem com a mãe, Kyung-Sook notou talvez pela primeira vez o olhar solitário de sua mãe e prometeu a si mesma que, um dia, escreveria um livro dedicado a ela. Com Por favor, cuide da mamãe, ela pôde cumprir com a palavra dada não só a sua mãe como também às centenas de milhares de mães que, assim como a sua, carregam no olhar um vestígio de solidão que a maternidade possa ter-lhes trazido. Com essa belíssima homenagem em formato de livro, Shin Kyung-Sook convida, na verdade, todos a questionar a si mesmos e a refletir sobre como estão lidando com as temáticas profundas que as páginas do romance trazem à tona. Afinal, para que todos nós fôssemos presenteados com a vida, foi necessária uma mãe.
O enredo da narrativa é, por si só, instigante. A história começa quando Park So-nyo, mãe de 5 filhos, separa-se do seu marido, que tinha o costume de andar sempre a sua frente, e acaba desaparecendo em uma movimentada estação de metrô em Seul. O marido embarcou no trem para a próxima estação e ela, não. O que é, à primeira vista, um acontecimento bobo culmina em preocupação, mobilização, desespero, negação e sucessiva aceitação dos filhos e marido. O livro é dividido em quatro capítulos e um epílogo, cada um narrado pela perspectiva de um personagem diferente da família. Tem-se, respectivamente, os momentos após o desaparecimento de “Mamãe” narrados pela filha mais velha, Chi-hon, logo em seguida pelo filho mais velho – segundo os próprios filhos, o preferido, Hyong-chol -, pelo esposo, pela própria Park So-nyo e, finalmente, de novo pela filha mais velha. Essa estratégia de narração, além de enriquecedora, convida o leitor a montar um quebra-cabeça e desvendar, junto com os entes da família, a personalidade da mãe desaparecida. Durante várias passagens do livro, há, ainda, flashbacks de momentos cotidianos e aparentemente banais, mas que, muitas das vezes, revelam facetas da mãe que os próprios filhos só foram perceber após seu sumiço.
Os elementos da capa também carregam significados que entrelaçam trechos da narrativa e rapidamente nos transportam para suas referências. Tudo faz sentido na capa, desde as flores decorativas que margeiam o título até os pássaros no céu, a cidade grande no fundo e, claro, a mulher que leva uma criança na mão. Todos esses símbolos unidos remetem, inclusive, à estação da primavera, período mencionado e metaforizado em diversos momentos da história.
Além da estratégia de narração por distintas perspectivas, a autora opta por fazer uso de uma linguagem que causa estranhamento e desconforto constantes. Em muitos momentos da narrativa, utiliza-se o presente do indicativo, com o qual os leitores já estão acostumados, e, ainda, a segunda pessoa do singular, elemento esse que, a meu ver, carrega uma forte mensagem por trás. Fato é que o uso da segunda pessoa do singular – no português brasileiro, representado pelo “você” na maioria das ocasiões e regiões – é por si só um desafio de escrita e de leitura, já que embaralha completamente nossa noção a respeito de a quem o narrador está se referindo. Vejamos um exemplo: “Você percebeu que se tornara uma estranha ao ver Mamãe tentar esconder a confusão do seu dia a dia” (SHIN, p. 17). Embora seja o capítulo focado na perspectiva da filha mais velha, Chi-hon, não há um “eu percebi” ou “Chi-hon percebeu”, e sim um “você percebeu”, que mostra que um expectador onisciente está, de fora, analisando e dissecando as ações da personagem em foco.
O que é mais intrigante dessa ferramenta de escrita é que tal “expectador onisciente” está o tempo todo, de forma bastante discreta, julgando os personagens e suas atitudes feitas no passado, ou aquelas que deixaram de realizar. Além disso, o “você” empregado com frequência na narrativa é também absorvido pelos leitores, de modo que, em muitos momentos, nós podemos – e sentimos – ser postos no mesmo lugar que os personagens – o que justifica todos os questionamentos desagradáveis que ficam pendentes na nossa cabeça durante a leitura e, ainda, o sentimento de culpa e remorso que nos perpassa ao nos projetarmos nas situações descritas pelo narrador. Esse mecanismo poderia ser visto em um outro texto como supérfluo ou mesmo desnecessário, mas, em Cuide bem da mamãe, ele é rico, potente e verdadeiramente angustiante.
Embora se aproprie dessa ferramenta literária, Shin Kyung-Sook em nenhum momento realiza um discurso apelativo ou doutrinário. Na verdade, a autora vai na direção oposta: traz, sem nenhum véu idealizador, uma realidade dolorosa, porém verdadeira, de muitas famílias, deixando à critério do leitor associar a história narrada com suas próprias experiências. Não há culpabilização dos filhos e do marido, tampouco uma lição de moral, e sim uma instigação a questionamentos referentes aos nossos comportamentos com aqueles que nos cercam. Esse mecanismo dialoga com uma sensação compartilhada por muitos leitores que é a de que, a depender da fase da vida em que se está passando e do seu repertório enquanto indivíduo, cada um entenderá, sentirá e guardará a história de um livro de forma distinta e completamente particular. Parece-me que, ao deixar nas mãos dos leitores a interpretação e julgamento dos personagens, a autora não se torna imparcial frente à mensagem que transmite, e sim faz um convite para que nós, leitores, possamos reanimar, ou ainda desenvolver, questões profundas que guardamos dentro de nós.
A pergunta que cabe ainda se fazer é: por que esse é um livro tão instigante e tão hipnotizante? A resposta, talvez não tão simples, pode variar de leitor para leitor, já que a proposta da autora é justamente permitir que cada um chegue às suas próprias conclusões. Em primeiro lugar, acredito que o tema do livro reflete duas questões centrais que a maioria das pessoas tem de lidar: a vida agitada repleta de afazeres, horários e compromissos com restritos intervalos para lazer, família e amigos; e o envelhecimento que bate à porta todos os dias, além, é claro, do fato de todos terem tido, em algum momento da vida, uma mãe, como já foi abordado previamente. Esses três pontos, na minha opinião, são chave para um convite à leitura bem sucedido, uma vez que eles se reúnem em um tema que é generalizado e englobam, assim, uma gama significativa de leitores em potencial.
Para aqueles que envelhecem junto de suas mães, ou de pessoas que lhes são muito queridas, há ainda um outro assunto passível de ser abordado. A figura dos pais ou educadores – aqui com enfoque especial na figura materna – é símbolo de cuidado, segurança, proteção e conselho, ao mesmo tempo que é o primeiro modelo a partir do qual moldamos a nossa personalidade. Com a velhice, que primeiro acomete os progenitores ou criadores, os papéis muitas das vezes precisam ser invertidos: os filhos, que sempre foram os receptores de carinho e atenção dos pais, passam a ter de cuidar daqueles que os criaram. A sensação de abandono, de perda de uma referência, além de evidente, é, então, refletida na falta de paciência, fruto às vezes de uma própria negação daquele estado de inversão de funções. Os filhos de Park So-nyo sofrem essa mudança de papéis, perceptível seja nas ligações escassas, obrigatórias e vazias de Chi-hon, seja na falta de reconhecimento Hyong-chol de todos os sacrifícios para seu sucesso, ou, ainda, no tempo limitado reservado pela filha mais nova para a mãe. Todas essas ações, em graus menores e maiores, dialogam com a negação dos filhos dessa nova fase de cuidado que eles precisam dedicar à “Mamãe”.
Um fragmento do livro que ilustra com singeleza e maestria o significado de uma “mamãe” para suas crias é:
A palavra “Mamãe” é familiar e esconde um apelo:
por favor, tome conta de mim. Por favor, pare de gritar
comigo e faça um afago na minha cabeça; por favor,
fique do meu lado, tenha eu razão ou não. Você nunca
deixou de chamá-la Mamãe. Mesmo agora que ela
desapareceu. Quando você chama “Mamãe”, quer
acreditar que ela está bem de saúde. Que está forte.
Que não se incomoda com nada. Que Mamãe é a
pessoa que você tem vontade de chamar toda vez que
se desespera com alguma coisa nessa cidade. (SHIN, p. 18)
O trecho acima confirma o que “Mamãe” representava para seus filhos – ou melhor, o que uma mãe representa para seus filhos – e justifica, de certo modo, o total desamparo que esses sofrem quando a figura materna desaparece fisicamente de suas vidas. O que se percebe, então, é que somente com a dor da ausência da mãe os filhos passam a enxergar, reconhecer e valorizar todos os sacrifícios, resignações e abdicações que ela teve de fazer para poder proporcionar-lhes a melhor educação que era possível a ela.
A figura de Park So-nyo desempenha, então, uma espécie de síntese das variadas facetas da maternidade. Embora seu sobrenome, Park, seja um dos mais comuns na Coreia do Sul, o seu significado – “singelo”, “simples”, “sem adornos” – condiz com a própria imagem que “Mamãe” transmite aos familiares e vizinhos. Aqueles que viveram em sua companhia a enxergavam unilateralmente como uma mulher do lar e mãe de cinco filhos comum, que não teve educação e se casou jovem demais para seguir qualquer sonho que porventura pudesse ter. Seu sobrenome reafirma como ela era vista e a realoca, como um destino irreversível, à função de cumprir esse papel limitante e resignante até o fim.
A sensação que me invadiu durante e também ao terminar de ler o livro foi, sobretudo, de que Shin Kyung-Sook meticulosa, ardilosa e cautelosamente foi abrindo em nós fendas, cicatrizes, remorsos, e nos instigando a, de forma nada agradável, revisitar os nossos pensamentos e medos mais íntimos com relação às figuras amadas que estão a nossa volta e que são ameaçadas, assim como todos, a desaparecer a qualquer momento para sempre. É um livro pungente e que cumpre com maestria sua proposta de causar desconforto aos leitores. Sendo assim, a recomendação de sua leitura se torna necessária, inevitavelmente, a todo ser humano que tenha a coragem de se questionar, de mergulhar em si, e de, muito provavelmente, fechar um livro com uma inquietação lancinante, porém bastante memorável.
Esta resenha foi escrita em 2021 para o Concurso de Resenhas promovido pela Embaixada da Coreia do Sul.