por Bruna Giglio e Denise Nobre
Considerada a obra-prima da premiada quadrinista sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim, Grama chegou aos leitores brasileiros em uma edição de capa dura da editora Pipoca & Nanquim, publicada em 2020. Com tradução direta do coreano para o português feita por Jae Hyung Woo, essa edição atualmente está esgotada no Brasil no formato físico, restando apenas o e-book. Embora pedidos de uma reimpressão sejam muitos, a editora, que no Brasil também é a casa das outras três obras da autora (e mais uma anunciada para lançamento na CCXP 2024), ainda não se manifestou. No entanto, a Iguana, selo editorial da Penguin de Portugal, responsável por histórias em quadrinhos e livros ilustrados, recentemente lançou uma edição da obra, lá intitulada Erva, com a tradução de Yun Jung Im, tradutora premiada que traduziu também as outras obras da autora no Brasil. Essa pode ser uma alternativa, ainda que cara, para que aqueles leitores que preferem o livro físico possam, enfim, ter em mãos essa obra poderosa e que revela o trauma geracional das mulheres coreanas escravizadas sexualmente. Uma história cruel, mas que não deve nunca ser apagada.
Para o episódio 24 do Podcast Sarangbang, convidamos a professora, pesquisadora de literatura coreana e fã de histórias em quadrinhos Ane Morais para um bate-papo sobre Grama. Ane está atualmente desenvolvendo sua tese de mestrado intitulada “A luta das ‘mulheres de conforto’ por uma reparação: análise da graphic novel Grama, de Keum Suk Gendry-Kim” na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). Após a conversa no episódio, ficou clara não só a potência dessa leitura e a sua capacidade de trazer aos leitores um acontecimento pouco conhecido na história da Ásia, como também o abismo gigantesco em que nós, brasileiros que estão se interessando mais, e se apaixonando, pelas produções sul-coreanas da Hallyu, nos encontramos quando o assunto envolve os fatos históricos, a cultura e os valores tradicionais que embasam a memória da península coreana. Mesmo que hoje a Coreia do Sul exporte sua cultura pop tanto quanto o Japão – nos últimos anos sendo, inclusive, mais popular entre os fãs brasileiros -, a história contada e protagonizada pelos japoneses ainda nos é a mais acessível. Então, por que não conhecer o outro lado da história? Nesta breve resenha, apresentaremos motivos para os leitores, e principalmente, as mulheres, se deixarem impactar por essa leitura devastadora e por um capítulo da história que muitos querem pular.
Keum Suk Gendry-Kim nasceu em 1971 em Goheung, na província de Jeolla, na Coreia do Sul. Ela estudou pintura ocidental na Universidade de Sejong, em Seul, antes de se mudar para a França e se formar, em 1998, em Artes na Escola Superior de Artes Decorativas de Estrasburgo, em Paris. Durante os seus 17 anos morando lá, trabalhou como tradutora de quadrinhos coreanos para o francês e acabou desenvolvendo o seu interesse por graphic novels e optando por dedicar sua carreira a dar voz, por meio dos quadrinhos, àquelas pessoas que muitas vezes ficam à margem da história. Grama foi o seu trabalho que, além de cumprir com maestria o feito de trazer um relato vívido sobre as “mulheres de conforto”, recebeu maior atenção internacional, inclusive tornando a quadrinista a primeira sul-coreana a ganhar o Prêmio Harvey, prêmio de maior prestígio no mundo internacional dos quadrinhos, sem contar as três indicações ao prêmio Eisner.
Apesar da temática pesada, Grama é uma obra de uma beleza artística impressionante. Cada página apresenta cenários detalhados com uma riqueza que cativa o olhar. A autora faz escolhas estilísticas deliberadas, muitas vezes optando por não deixar os horrores expressos graficamente. Em vez disso, ela preenche algumas cenas com um nanquim denso, sem dar espaço para expressões de tristeza, dor ou sofrimento dos personagens, desafiando o leitor a imaginar e interpretar os sentimentos conflitantes das mulheres vítimas da escravidão sexual. À medida que mergulhamos nas diversas camadas das memórias de Ok-sun Lee, somos fisgados por suas lembranças e testemunhos e conseguimos, pouco a pouco, esboçar o fio condutor que liga os traumas profundos que moldaram a sua personalidade. Através dessa narrativa visceral, a artista constrói uma memória coletiva que nos conecta ao sofrimento das aproximadamente 200 mil mulheres vítimas das “casas de conforto”, local onde os abusos eram cometidos, e nos oferece uma reflexão crucial sobre um episódio da história que é amplamente desconhecido por muitos.
No entanto, engana-se quem achar que a obra Grama se limita a retratar o sofrimento das mulheres em tempos de guerra ou dominação. A história de Ok-sun Lee vai muito além e nos apresenta capítulos da sua vida na China após libertação da Coreia, conseguinte à derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, bem como o seu reencontro doloroso com a família ao retornar à Coreia do Sul, trazendo à tona, e de modo bastante cru, as diversas formas de opressão enfrentadas pelas mulheres em sociedades patriarcais, especialmente em contextos profundamente influenciados pelo confucionismo, como era o caso. Ok-sun Lee, uma jovem que apenas desejava frequentar a escola, teve seus direitos e sonhos constantemente negados devido à sua condição de mulher pobre coreana. Seu testemunho enquanto ativista nos convida a refletir sobre a condição feminina, e ter contato com a força desse testemunho nos permite compreender as cicatrizes históricas entre coreanos e japoneses e nos leva a questionar por que a retratação do governo japonês que Lee e outras mulheres escravizadas tanto reivindicam ainda não foi realizada.
Gendry-Kim, ao transformar o relato de Ok-sun Lee em uma obra gráfica, ratifica que ela não carrega apenas o rótulo de uma “mulher de conforto”. Através de sua narrativa, somos apresentados a uma figura multifacetada que engloba uma filha obediente, uma jovem sedenta por conhecimento, uma amiga leal, uma patriota, uma esposa dedicada, uma mãe zelosa e uma ativista incansável. Essa é uma história de resiliência que, em suas mais de 400 páginas, nos transporta para o outro lado do mundo e para décadas passadas, nos ensinando a valorizar nossos dias de paz e a reconhecer a força e a dignidade dessas mulheres que tanto sofreram.
Grama é, portanto, uma graphic novel que nos apresenta uma dolorosa história de opressão feminina. É um livro que dá voz a um silenciamento que é reflexo da violência do Exército Imperial Japonês, que não apenas pisoteou a honra dessas mulheres escravizando-as sexualmente como também tentou apagar da história as experiências traumáticas vivenciadas por elas. O quadrinho também expõe o silenciamento das mulheres por meio da tradição patriarcal confucionista, tão forte na sociedade coreana. Esse é um livro destinado àquelas pessoas que buscam, sedenta e veementemente, por mais conteúdos aprofundados sobre Coreia, com o fim de melhor entendê-la. Àquelas que estão dispostas a se desafiar com uma leitura transformadora, afinal, tal qual “a grama derrubada pelo vento e pisoteada por muitos”, as palavras aqui entristecem e enfurecem, mas, assim como “a grama sempre se reergue”, a esperança por uma reparação passa a reverberar também em nossos corações.
Se interessou e quer se aprofundar na discussão de Grama ou ainda precisa se decidir sobre a leitura? Então, clique aqui e confira o episódio 24 do Sarangbang Podcast, no qual esse livro é o tema principal.