por Bruna Giglio
Traçado e delimitado desde sua concepção, o caminho do herói nacional Hong Gildong supostamente se traduziria em submissão e anuência às ordens vigentes de uma sociedade coreana regida por castas e hierarquias estabelecidas desde o berço. No entanto, a visão tida pelo renomado e respeitado ministro Hong, que “o guiou até um lugar desconhecido, onde montanhas verdejantes despontavam ao alto e águas azuis corriam vigorosas pelos vales”, reservava para o seu futuro filho bastardo uma vida bem diferente. No sonho, o ministro Mun Hong vê a figura de um dragão azul emergindo das águas e soltando um rugido grandioso, o que ele julga ser um sinal de agouro para a vinda de um “filho de grande valor”. Pela repentina, e declinada, proposta de se deitar com a esposa, a qual recusa sem escrúpulos a ideia um tanto ofensiva do marido, o ministro, prisioneiro de seu próprio desespero, acaba por ter relações com uma de suas concubinas, de origem humilde e que, nove meses mais tarde, dará à luz o grande herói da história.
Fadado a ter uma vida repleta de restrições e julgamentos por ser um filho ilegítimo, Hong Gildong passou o início da sua criação de forma desgostosa, “sem poder chamar seu pai de pai, nem seu irmão de irmão” e, por ter a consciência que nunca poderia exercer os cargos públicos ou se tornar general, decide mergulhar nos livros de guerra e dominar poderes mágicos que o tornariam invencível. Após uma tentativa de assassinato tramada por uma das concubinas do ministro, o jovem decide sair de casa e viver uma vida isolado, a fim de salvaguardar sua sobrevivência. É a partir desse ponto que a trama repleta de ação se inicia e que a busca pelo reconhecimento e justiça começa a ser moldada por esse menino bastardo de nome apagado.
Somente por essa breve síntese inicial do enredo fica notório que A História de Hong Gildong (홍길동전) trata de um assunto “coringa” para qualquer indivíduo que vive em sociedade: a procura por notoriedade e reconhecimento. Não coincidentemente, esse clássico da literatura pré-moderna coreana transita, até os dias atuais, no imaginário coletivo do povo como símbolo de questionamento das figuras autoritárias e das regras moduladoras do estilo de vida individual, que limitam a construção identitária de cada um. Além dessa onipresença do herói bastardo no dia a dia coreano, uma breve retrospecção na História da Coreia também aponta para diversos fatores que coincidem com o enredo do clássico e justificam o comportamento coreano atual. Dessa forma, um mergulho mais profundo nas cicatrizes deixadas pelos anos de sofrimento do povo coreano legitima, e muito, a maneira como esses vivem hoje e enxergam a figura desse “herói da massa”.
Sem entrar na discussão acerca da autoria de A História de Hong Gildong – dada, nessa edição e no senso-comum coreano, a Heo Gyun (허균) –, o que levaria a um tópico muito debatido entre acadêmicos com base em documentos escritos e pressupostos histórico-sociais, é importante se ater ao fato de que o livro, além de considerado a primeira obra ficcional escrita em hangeul (한글), tem como tempo interno a dinastia de Joseon (1392-1897), mais precisamente a metade do século XV. Nessa época, era permitido aos nobres o casamento apenas com uma mulher, diferentemente da dinastia anterior, a de Goryeo, mas a posse de concubinas era legal e muito comum nas casas dos mais abastados. Portanto, não é difícil imaginar que, durante esse período, assim como nosso herói Hong Gildong, muitos outros filhos ilegítimos foram concebidos e tiveram que enfrentar os mesmos desafios sociais, de modo que nem tudo retratado no livro é, de fato, apenas ficção.
Tendo em mente esse contexto histórico e social esclarecido, é imperioso destacar as três divisões da narrativa que guiarão esse ensaio e se ligarão fortemente à história do povo coreano. A propósito, essa repartição foi baseada na introdução do estudioso Minsoo Kang na versão americana do clássico coreano. Em linhas gerais, a primeira parte consiste em um breve retrato da dinâmica familiar na casa de um nobre durante a dinastia Joseon, que, embora não tenha um destaque no enredo da história, serve como contextualização do ambiente em que o herói está inserido. A segunda parte gira em torno de Gildong como líder dos ladrões e justiceiro do povo. Por fim, a terceira e última subdivisão engloba a ida do herói a terras longínquas e o estabelecimento de seu próprio reino subversivo às leis de Joseon.
Apesar de servir como ilustração do ambiente no qual Hong Gildong nasce e cresce, a representação da dinâmica doméstica de uma família nobre de Joseon, dada na primeira sub-repartição da história, instaura, indiretamente, o motim para o início do caminho do herói como um fora da lei. Por estar inserido em um ambiente no qual deve se manter nas sombras, proibido de transitar livremente como qualquer outro cidadão legítimo e sofrendo duras discriminações por uma origem que não foi sua escolha, Gildong, desde muito jovem, cria em seu interior um forte sentimento de injustiça, mágoa e culpa por não poder exercer os seus deveres de homem, como qualquer outro indivíduo. Com o passar dos anos, ao se ver totalmente capacitado de proteger sua vida sozinho, e provocado pela tentativa de assassinato de outra concubina, todos os sentimentos guardados consigo há tempos falam mais alto e o movem a deixar a casa do ministro Hong e a transitar pelo mundo livremente.
Esse movimento de libertação, precedido pelo despertar de uma consciência acerca de suas condições sociais, dialoga diretamente com o passado coreano de dominações e limitações. Assim como, no momento do enredo aqui detido, Gildong fica ciente do seu estado de discriminação e sente a urgência de se libertar das amarras sociais que o restringem, a Coreia do século XX, sob o regime japonês após anexação territorial, começa a criar forças para protestar contra seu estado de “fantoche” japonês.
Aqui cabe uma resumida contextualização histórica acerca da ocupação japonesa na Península Coreana, a fim de esclarecer a relação do movimento do povo coreano contra o regime autoritário com o enredo de A História de Hong Gildong. A ocupação japonesa (1910-1945) se iniciou, verdadeira e indiretamente, cinco anos antes, quando Japão e EUA assinaram o Acordo Secreto de Taft-Katsura de 1905 para invadir a Coreia e mantê-la sob domínio japonês, em troca de terras nas Filipinas dadas aos Estados Unidos. Pode-se dizer, assim, que a Coreia, antes mesmo de ser anexada oficialmente ao Japão, já era considerada uma marionete da política internacional, ideia essa que vai ser mantida durante toda a ocupação japonesa. Os 35 anos de regime foram preenchidos de políticas de apagamento das tradições coreanas, exploração da mão-de-obra local, miséria, pobreza e aproveitamento abusivo das coreanas como “mulheres de conforto” dos homens japoneses.
Fugindo do anacronismo que possa ser dado por essa aproximação da exploração japonesa no século XX com o contexto da obra aqui analisada, aproximadamente o século XV, é importante ressaltar que a ocupação de 1910 a 1945 é apenas o exemplo de uma das ocupações estrangeiras em solo coreano. A História da Coreia está repleta de interferências externas em sua política, cultura e economia, às quais não seria apropriado se ater no presente trabalho por não serem o foco principal desse. O que se quer com esse ensaio é justamente traçar um paralelo entre o movimento de libertação e ascensão social do herói Hong Gildong e um evento, que, na realidade, decorre de séculos de manipulação, da História coreana que desencadeou uma total revolução da grande economia mundial que o país é hoje.
Tendo em vista o contexto da ocupação japonesa na Península Coreana, e todas as consequências dessa para os cidadãos, é possível relacionar o despertar da consciência de Hong Gildong acerca das injustiças sofridas com o reconhecimento do povo coreano de suas discriminações sob o regime japonês no século XX. Nessa primeira subdivisão da obra, o herói entende seu estado e está determinado a mudá-lo, a se libertar dele e buscar uma vida na qual ele não seja julgado pela sua origem e sim pelas suas habilidades. Da mesma forma, durante a ocupação japonesa, o povo coreano identifica sua condição de marionete da política exterior e se determina a protestar contra esse estado. Em uma análise mais localizada, é viável inclusive postular que os coreanos se sentiam como verdadeiros filhos bastardos das outras nações, sem o direito de se postarem frente às decisões internacionais e de se reconhecerem como país independente e culturalmente único.
A partir do momento em que tanto Hong Gildong quanto o povo coreano despertam e enxergam as condições sob as quais estão sendo controlados, busca-se a contestação. No âmbito histórico, os coreanos, insatisfeitos com todos os rigores sociais impostos pelos japoneses, realizam o primeiro movimento massivo de revolta, que ficou conhecido posteriormente como o Dia do Movimento, em 1º de março de 1919. Face a esse protesto, o governo japonês se viu obrigado a afrouxar o controle, decisão essa que, anos mais tarde, foi revogada com o retorno de explorações nocivas para o povo coreano, como a proibição do uso da língua nacional, o hangeul. Contudo, apesar de o movimento de 1º de março não ter conseguido exterminar o domínio japonês, ele serviu como primeira manifestação de revolta contra as injustiças com o povo coreano. Em outras palavras, ele foi o primeiro passo dado pelos coreanos rumo a busca de dar voz aos oprimidos e de tomar o controle das rédeas de sua própria nação.
Da mesma forma, Hong Gildong, nessa segunda subdivisão, se afilia à gangue dos ladrões e busca fazer justiça com as próprias mãos e dar ao povo de Joseon o que lhe pertence. Ao cometer os crimes como um fora da lei com o intuito de trazer “justiça aos injustiçados”, o herói está, indiretamente, criticando as atitudes das figuras autoritárias que modulam e limitam as condições de vida do povo. É por conta de sua decisão de se postar lado a lado a favor dos oprimidos que Gildong recebe de “todos os lados vozes do povo em seu louvor”, tornando-se, assim, um herói da massa.
Após ter recebido o título de ministro, dado pelo rei como forma de aproximar o herói da corte, Gildong parte rumo a terras estrangeiras e instaura seu próprio reino. Nessa última parte da divisão do enredo, Hong Gildong rege uma sociedade da forma que lhe convém, seguindo princípios que considerava falhos na dinastia Joseon ou que eram restritos a apenas uma parcela da população, tornando-se rapidamente um rei agraciado pelo povo e responsável por décadas de paz e harmonia. É possível notar que, nesse ponto, o filho ilegítimo ganha finalmente notoriedade pelas suas atitudes em vez de pelo seu berço.
Igualmente, o povo coreano, após anos de exploração, consegue sua independência com a rendição japonesa e toma controle dos destinos do seu próprio país. Ainda com cicatrizes profundas geradas durante a ocupação do Japão, e os demais séculos de influências externas, os coreanos passam a ter de enfrentar um novo desafio: sair do estágio de “filho bastardo” das demais nações e conquistar legitimidade no cenário global. Assim como Hong Gildong depois de conseguir o cargo público de ministro e viajar para terras estrangeiras para constituir seu próprio reino, a Coreia daquela época devia, com a recém-liberdade adquirida, reconstruir toda uma nação e identidade para poder erguer seu próprio império novamente, regido pelas leis que igualmente lhe conviessem.
Olhando para a Coreia de hoje – e nesse ponto refere-se especificamente à Coreia do Sul por conta de sua abertura econômica, política e cultural -, são incontestáveis a evolução surpreendente do país em um período relativamente curto e a independência que esse adquiriu para tomar as decisões que o levaram à notoriedade “além-fronteiras” que nutre atualmente. Desse modo, A História de Hong Gildong traça um caminho do herói nacional que muito dialoga com a própria luta coreana de sair de um estado de subordinações e ilegitimidade para ascender a um patamar de prestígio pelo o que de fato o país tem a oferecer.
Referências
ALL THINGS CONSIDERED (EUA). ‘The Story Of Hong Gildong’ Helps Define Korean Sense Of Identity. NPR, Estados Unidos, 14 mar. 2016. Disponível em: https://www.npr.org/2016/03/14/470427638/the-story-of-hong-gildong-helps-define-korean-sense-of-identity. Acesso em: 8 nov. 2020.
BAI, Stephany. New Penguin Classic ‘The Story of Hong Gildong,’ Is More Than ‘Korean Robin Hood’. NBSnews, [s. l.], 19 set. 2016. Disponível em: https://www.nbcnews.com/news/asian-america/new-penguin-classic-story-hong-gildong-more-korean-robin-hood-n645886. Acesso em: 7 nov. 2020.
MARTINS, Charles. A Ocupação da Coreia pelo Japão [História]. In: Korean Post. [S. l.], 1 nov. 2017. Disponível em: https://www.koreapost.com.br/conheca-a-coreia/historia/a-ocupacao-da-coreia-pelo-japao-historia/. Acesso em: 7 nov. 2020.
A OCUPAÇÃO DA COREIA PELO JAPÃO. Aula Zen, [2020]. Disponível em: https://aulazen.com/historia/a-ocupacao-da-coreia-pelo-japao/. Acesso em: 7 nov. 2020.
THE STORY OF HONG GILDONG. Tradução: Minsoo Kang. 1. ed. New York, New York: Penguin classics, 2016. ISBN 978-0-698-40661-2. Ebook 105p.
VISALLI, Dana. Korea: A Brief History Explains Everything. In: Global Research. [S. l.], 23 jan. 2019. Disponível em: https://www.globalresearch.ca/korea-brief-history-explains-everything/5666183. Acesso em: 14 nov. 2020.
Este ensaio foi escrito em 2020 para o Concurso de Resenhas do Centro Cultural Coreano no Brasil e rendeu à Bruna, autora, o prêmio de 2° lugar.